segunda-feira, 19 de agosto de 2013

História de pescador


Cinco e quinze da tarde. E nada do pai chegar. A hora passa rápido. Os ponteiros do relógio parecem não notar a sua angústia. Ele tem raiva. Queria que fossem mais sensíveis à sua paixão. A essa altura, à sua preocupação também! Mais três minutos e nenhum sinal. Nada estranho para quem não tem hora certa para voltar. Trabalho de assalariado, o filho entende. Patrão, e principalmente o chefe (daquele tipo que tem síndrome da pequena autoridade), esfolam o couro no emprego mesmo. Implacáveis.
- Logo hoje? - , questionou, irado.
Pelas suas contas era praticamente impossível dar tempo. A matemática, de tão simples, passou como um flash em sua mente; são, no mínimo, duas horas e meia até o estádio. Aflição. Sentado no sofá desbotado, espumas à mostra, chora intimamente. Desiste. Vê que a dependência da liberação é quase sinônimo de escravidão. Em qualquer sentido. É perceptível! O sofrimento até dá uma trégua. Até amortece.

Quando já é hora do jogo, liga o rádio. A seqüencia básica da audição segue o fluxo inabalável da receita pré hora esportiva: o locutor chama o repórter de campo (em emissora do interior é assim: um só cobrindo tudo), que passa as escalações e o banco de reservas. Em seguida vem o comentarista, voz balzaquiana, jeito auto-confiante, analisando o "um-à-onze" das duas equipes. E o pai, nada!Trila o apito. À essa altura, já tinha virado neurose de filho. Sabe como é, né: da poltrona os pensamentos e preocupações fluem. Até que, bola na rede pela asegunda vez, a porta abre! É vibração intensa. Não estar na arquibancada passou a ser insignificante. O gol do artilheiro, também! O "velho" sobreviveu a mais um dia de batalha. E abriu a fechadura com um sorriso de quem passou o dia jogando bilhar. Inacreditável a alegria retida em seus músculos.
Vai para a cama quase sonâmbulo, quase embutido de um sentimento conflitante. Totalmente renovado. E até feliz!

Dorme.
Na concentração, o zagueiro botinudo e capitão diz que o técnico chama. Dá tempo de mal esfregar os olhos e lavar o rosto. Abre a carteira, vê a foto da família. O pescador que sustenta a família de nove filhos estava lá em Aracaju. Acompanhando, como sempre, sua performance pelo bom e fiel amigo de pilha.
A rotina muda-de-roupa/embarca-no-ônibus/chega-ao-vestiário/vê-todo-mundo-nu/ se repete. O esquema com três defensores dificulta um pouco. Sua habilidade em sair jogando e buscar a bola fora da área é prejudicada pelo rígido, quase inabalável, esquema tático.
- Isso é para centroavante grandalhão, que só usa o cabeceio - , pensa justamente na hora de mais um escanteio batido aberto pelo lateral direito.
Acaba a partida. O empate no campo apertado, contra um aguerrido escrete local, até que foi bom resultado. Volta para a cidade grande mas não tem jeito: nada, nem a loira mais boazuda, o faz esquecer. Tudo bem que jogar em clube grande é comum o cara ter o que quer; mordomia, mulheres e até... Ah, isso não faz sua cabeça mesmo. Mas chega a incomodar ver colega de elenco deixando o vício espirrar a carreira no ralo. Continua fixado no Nordeste.
- Ele bem podia estar aqui - , vislumbra.

Desperta de manhã cedinho.
Balança a cabeça e parece não entender direito o que aconteceu. Foi bom enxergar um destino. Duro é encarar a realidade. Ouve um chamado.
- Ai, vou ter que ajudar - , lamenta-se.
Escovando os dentes vê no espelho a imagem de um sonhador. Triste. Desanimado.
- Bem que a bronca do treinador podia ter sido verdadeira. E a torcida vibrando, idem -, arranha os dentes. Mas sabe bem dos traços do dia-a-dia que vão rabiscar mais uma página da sua sofrida e sensorial rotina.
- Vou lançar a rede e esperar pelo lampejo do mar - poetisa.
Até volta cedo. O barco da colônia que o pai gerencia (e dá graças a Deus de conseguir mais um trocado por isso) atrasa.
Cinco e quinze da tarde. Tem um campinho de futebol-de-areia improvisado.
Desce correndo, ajuda a pôr o camarão em baldes de gelo e isopores. Pede para ser liberado ao fim da função.
Consegue.
Corre, serelepe, para a pelada. Entra no time-da-cerca. Faz três gols. Volta para casa. Oito e trinta e cinco. Busca a geladeira. Pega uma latinha. E liga o rádio. É quinta-feira. Vai saber dos resultados de hoje. Seu time jogou ontem. Agora não precisa se preocupar em ver a partida ou não. O "coroa" já está lá dentro. E bebe uma com ele. Sem compromisso, vão ouvir, calmamente, o locutor chamar o repórter de campo para passar as escalações...