segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Centro de cidade


O cotidiano é realmente intrigante e surpreendente. Uma espécie de professor invisível. Dia desses passava pelo Centro da cidade. Um senhor já aparentando ingresso na casa dos 60 deixou, sem querer, a carteira ir ao chão. Como vinha logo atrás, pus o instinto filantrópico a funcionar, na melhor intenção de ajudar ao pobre homem que, com toda certeza, teria muitíssimo trabalho para tirar a segunda via dos envelhecidos documentos.

Abaixei-me, mesmo sofrendo com as fortes dores provocadas pela hérnia de disco que não sossega quieta a uma pequena queda de temperatura, e apenhei o objeto. Mal consegui esboçar um grito de “meu senhor”! Tarde. O espertinho já havia dobrado a esquina, todo serelepe, com uma rapidez impressionante para a idade. Sem se dar conta da perda. Nem olhou para trás. Não colocou a mão no bolso da calça, gesto típico de quem percebe a queda.

Como curiosidade mata, resolvi pôr os olhos no pertence alheio. Pronto, descobri de quem se tratava: aposentado por invalidez (pasmei!), casado e pai de três filhos. Pelo menos era o que constava, superficialmente. Dono de um nome extenso e de fácil assimilação. Se chamava José Aparecido Cordeiro De Melo Cardoso Filho. Assim mesmo, com o D maiúsculo. Deve ter herdado do pai, homônimo não fosse o último nome. Um velhinho simpático à primeira foto.

Após analisar detalhadamente os papéis, cheguei a seguinte interrogação comigo mesmo: pra que é que nós precisamos de tantas provas se só temos uma identidade? Interrogações filosóficas de lado, prossegui na intenção de levar o achado a algum veículo de comunicação social ou delegacia de polícia que pudesse localizar o indivíduo. Procurei também, em vão, um guarda municipal disposto a ajudar na busca.

Como qualquer área central de município interiorano, percorri todo o comércio e parei no mesmo lugar. Desta vez não foi o criminoso que voltou ao local do crime. Para minha surpresa, lá estava ele: justamente o senhor de quem eu havia achado a documentação original e alguns trocados. Conversava sossegadamente com um rapaz na porta de um boteco enfeitado com pôsteres do América. Me aproximei, ansioso pela devolução.

Ouvi alguém dirigir-se a ele como “Seu Zé”. Sem pestanejar, rapidamente interrompi o talvez proveitoso e descontraído papo.
Relatei o acontecido.

- Coisa da idade, meu filho. Não é a primeira vez – revelou em voz suave, com ar despreocupado e agradecido.

Fui para casa com a leveza proporcionada pela sensação do dever cumprido. E intrigado.
Por que eu estava tão preocupado enquanto ele, sorridente, nem se alterou?

Só pode ser coisa da idade.