terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Caminhar

Como descobri sabe sobre amar?
Quando ouvi o peito assoviar.
Sem relógio, só cumplicidade.
Que dura o tempo da eternidade.

A gente desliza a vida devagar.
Não marca hora certa pra chegar.
E nesse nó inquebrável do laço,
Espera a vez de um outro abraço.

Quando você vai sorrir, eu sei.
Se vai rir de si mesmo, tentei.
Quando vai dormir, eu que sonhei.
E se tiver teu orgulho, acertei.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Descalço

Que vontade de catar o violão,
E sair por aí sem destino certo.
Levando no bolso só o coração,
O passo errante e o riso incerto.

Sem plano, sem roteiro, sem chão,
Sem máscara, sem aço, sem laço.
Beijando o vento na contramão;
Berrando, driblando o cansaço.

Rabiscar na parede, contar história;
Sem cansar, sem querer, sem penar.
Ser amigo do tempo e da memória,
E parar só quando a alma aquietar.

Obs. - Parceria com Marcelo Benjá

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Didi, Floyd, João Pedro, Miguel e Marielle

Didi não se embrenhou na rede, não.

Pediu, pegou e se apossou da bola depois.

Veio quieto, com ela embaixo do braço, até o meio da quadra.

Impassível. Imponente. Príncipe.

Disse para Floyd: "Protege a Marielle, eles são covardes".

Ficou claro no primeiro ataque adversário, em que um atacante raivoso, deputado fortão do PSL, empurrou a goleira com a mão direita, impedindo-a de alcançar a bola. E comemorou o gol rindo, fazendo gesto de arminha.

Didi olhou fixo para João Pedro e Miguel.

Apontou as extremidades da quadra.

Genial, definiu ali a tática de jogo.

Ficou mais recuado, ajudando Floyd a preservar Marielle.

E liberou os garotos.

Foi um massacre.

Três de João Pedro, que só sorriu.

Dois de Miguel, serelepe. Acenou para as câmeras e a gente da TV, que filmavam tudo ali. Expurgou: "Mãe, tô feliz".

Didi, de longe, fez o sexto.

E Marielle, se livrando de um miliciano que a mirava, num chute espetacular de sua área, fechou o 7x1.

Os negros, ah, eles devolveram nossa dignidade. Tinha de ser.

E será.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Sinônimo de amor é amar

Desperdiçar tempo com videogame não foi cogitado.

A companhia da caixinha amadeirada, recheada de lembranças, é que congelou o relógio de pai e filho.

Havia muita história entre fotografias, anotações e outros guardados.

O guri tomou as rédeas da profissão do progenitor e passou a entrevistá-lo.

Com o gabarito de quem rasgou o céu de ponta a ponta, ou de Pernambuco ao Porto, com direito a longas escalas em Campos e no Rio de Janeiro, Marlúcio apenas sorriu ao intuir como seria aquele fim de tarde em quarentena nas terras lusitanas.

Vicente ajeitou o cabelo, posicionou os óculos e estreou como repórter indagando sobre um desbotado ingresso de jogo de futebol.

- Era agosto de 1975. Fui ver meu Santos num antigo estádio, já demolido, contra o Americano. De um lado, craques como Clodoaldo, Cláudio Adão e Edu. Do outro, um time que pela primeira vez jogava o Campeonato Brasileiro. No último minuto a equipe do interior marcou e venceu.

Pareceu relato de uma divina comédia humana.

O menino visualizou a angústia do goleiro santista na hora do gol derradeiro.

Foi ao delírio com a experiência em coisas reais.

- Viver é melhor que sonhar? -, sussurrou. 

- Qualquer sofrimento passa, mas o ter sofrido não -, respondeu o veterano, como se bigode de Belchior tivesse.

Todo sujo de um batom imaginário, não disse que a vitória foi perdida.

- É de batalhas que se vive a vida!

Ao levantar os olhos, avistou o rasante de uma patativa alvinegra pelo quarto.

Um pequeno envelope preso ao bico foi deixado sobre a cama.

A mensagem estava escrita a lápis.

"Deixe tudo ser chão de Giz. Que o grão vizir atravesse o túnel do tempo movido a baioque e flerte com a democracia em Copacabana. Help! É lá onde está nossa lida juventude".

Assinado: Zé Gílson.

terça-feira, 26 de maio de 2020

O diálogo dos talheres

Pequenas tragédias antes das oito
E aquela mania de tentar ser feliz
Na tinta iludida e versátil infinito
Um roteiro escasso do que não fiz

Descarto garfo e faca, prefiro colher
Insensível ao desejo que te assanhe
No tempo vácuo de mar sem maré
Não vi areia ou sorvi champanhe

É só o calor que sussurra na gente
Como um vendedor de versos rubros
Esse impulso de seguir diligente
E sem espinhos dourados nos ombros

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Tropical

Chuvarada
Prestimosa
Madrugada
Melodiosa

Carniceiros
Aflitos
Feiticeiros
Confeitos

Linguagem
Incide
Voltagem
Decide

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Meu nome não é Erasmo

A ideia de fazer a "Noite do Vinil" no Teatro de Bolso partiu de Wellington Cordeiro, ganhou adesão de Romualdo Braga e convenceu Márcio de Aquino.

A empreitada tinha conceito estruturado: a plateia deveria ficar acomodada nos assentos sem qualquer remelexo, de modo a degustar cada nota musical espetada pela agulha do toca-discos.

A playlist enfileirou pertencimentos campistas como a ginga de Eli Miranda, a efervescência dos Avyadores do Brazyl e a violeta bossa trip de Giu de Souza.

Último dinossauro na floresta, coube a Márcio fechar as cortinas do intimista espetáculo de culto à arte local.

Já sem público e com os parceiros de aventura a léguas, se preparava para deixar o oraviano espaço após armazenar seu tesouro afetivo na garupa da bicicleta quando ouviu de Alex: "nós três vamos ter que dormir aqui, ninguém mais pode sair de onde está por causa do vírus".

Atônito, não compreendeu de imediato a referência do bilheteiro também à Layla, economista formada pela Cândido Mendes que, desempregada, vendia doces caseiros no hall. 

Brigadeiros aplacaram a fome do trio.

A moça, um ano mais velha que Alex e crush dele, percebeu que Márcio guardava semelhança com...

- Me chamam de Erasmo, principalmente um conhecido meu metido a poeta.

Revelando-se ex-aluno do Liceu e torcedor fanático do Campos, Alex quis saber um pouco mais sobre o balzaquiano que acabava de impressionar.

- Sou apenas um investigador dos deslizes humanos, surrupiador de pequenos enganos e que conjectura em Tarati Taraguá.

Mal termina a pequena autobiografia, Márcio recebe um zap.

Era Moraes Moreira, pedindo para ele revisar um cordel sobre tentativa de volta da ditadura militar e fake news em tempos de pandemia.

O título sugeria rebeldia e resistência: "Chicletes e prazer".

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Bem

Acorde, intuição
Afine concepção
Emane construção
Irradie harmonização

Revire, imaginação
Saboreie inspiração
Propague reflexão
Partilhe interação

Venere, coração
Armazene disposição
Pulse compreensão
Transborde violão

terça-feira, 21 de abril de 2020

Ato infracional número cinco

Da utopia encastelada e faz-de-conta
Não permita a bíblia de certezas orar
Rasgue viseira cega com mofo na ponta
Descarte pulhas, deixe a lucidez festejar

Já que liberdade não deve ter receita
De pequenas alegrias prefira o cansaço
A palavra pouco dita nossa boca enfeita
E que não nos suba à cabeça o mormaço

Se o relógio marca: atrasados para morrer
Uns dias só atravessam, outros extravasam
Algeme regras e leis tolas, favor não ler
Enquanto uns dias defasam, outros embrasam

terça-feira, 14 de abril de 2020

Diário de bordo

Era uma segunda à tarde quando decidi
Me pautar a tarefa diária de produzir.
Fazer fotos e escrever durante a quarentena,
Numa rotina tanto obrigatória quanto serena.

Regra básica: todo o conteúdo seria inédito,
Feito somente de dentro de casa, de propósito.
Durante seis dias mostraria só as imagens;
Uma vez por semana, versos nas postagens.

Lá estão os filhos, pôr do sol, placa, bonecos,
Bruxa, automóveis e terço, mas sem repetecos.
Revelei saudade do meu time e pedi paciência;
Agora é seguir com esperança e fé na ciência.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Última gota de suor

Na faculdade que me ensina a ser eu
Tem só garoa, fogueira e cansaço teu
Nessa cena dourada, temporal e inversa
A crença cega e a memória é perversa

Parece carta de amor sem destinatário
Com o perfume de fada do mostruário
Carrego até a interrogação da perda
E ainda tento gol de perna esquerda

No silêncio das palavras invisíveis
Repousam nostalgias quase audíveis
Se você for a noite, não quero acordar
E se o dia amanhecer, vem me bronzear

terça-feira, 31 de março de 2020

Falsa mancha de vinho tinto

Uma borboleta pousou no retrovisor
Reservado para o olhar transgressor
Fui lá fora e embalsamei a estrada
Nesses dias sem relógio em disparada

Acabei de perceber você perto de mim
Morena cor de romance vestida de sim
Quando sua sutileza salta e arranha
Nesses dias lentos a vida me estranha

Sei que mereço a façanha do amor
E deixo aberto o livro do frescor
Sou malabarista de concreto e café
Nesses dias em que até o sol deu ré

terça-feira, 24 de março de 2020

Versos vendidos

Começo o dia te deixando sabor da manhã;
Minha xícara com tatuagem de seu batom.
Por baixo da ginga mora dignidade tamanha;
Rima de salto-alto e angústia com moletom.

Continuo meu dia te apreciando me marcar;
Trago cinzeiros, sublimo de tudo um pouco.
Suas pernas de louça embaçam meu olhar;
Traçam-se num descompasso quase rouco.

Termino o dia contemplando seu voo da vez;
E suplicando aos vilões para não ter atalho.
Que não esbarre em reticências ou altivez;
E não sangre a flecha indivisível do trabalho.