terça-feira, 20 de agosto de 2013

Tom de quarta-feira


De repente
O sol vem tão quente...
É um fogo ardente
Em homenagem a gente.
Quando não vê, só sente
Vontade de ir em frente.

De repente
Minha mão insolente,
Teu beijo adolescente.
Nosso desejo envolvente,
Que não fala, e não mente;
Só banca de inteligente.

De repente
Você aparece contente,
Sorriso bem transparente.
E uma voz indecente
Apertando meu queixo com o dente
Mostrando a lua crescente.

De repente
É a paixão nascente,
Que nasce de um acidente.
A vida segue descrente.
O tempo passa ausente.
Vamos ver se fica assim, ascendente.

Quarta


Se te chamarem, responda não.
Se for viajar, esqueça o chão.
Se não quiser conversar, televisão.
E se tiver fome, copo na mão.

Se usar salto-alto, desça.
Se colecionar amigos, cresça.
Se andar por aí, enlouqueça.
E se olhar a agenda, desapareça.

Se procurar roupa, desarme.
Se abrir o guarda-chuva, queime.
Se te rangerem os dentes, ame.
E se deitar no sofá, me chame.

Perfil


Quando você não está
Vou secar saliva dos lábios
E guardar amor em colcha de retalhos.

Quando você não está
Vou desenhar seu rosto em guardanapo de papel;
Olhar pra cima, te procurar no céu.

Quando você não está
Toda reza é profana;
Nenhuma promessa me engana.

Quando você não está,
O relógio atrasa.
E o bar vira casa.

Quando você não está,
O copo é vazio
E o corpo é frio.

Quando você não está
Ouço o CD que me deu,
Sonho o sonho que é seu.

Quando você não está,
O colorido desbota.
A reta entorta.

Quando você não está
Pode até me enganar,
E fingir que vai chegar.

Olhos castanhos


Da vida aqui levo o trago do cigarro;
A poeira da rua, o gole amargo.

A ilusão do dia seguinte,
A mão calejada do pedinte.

Levo o troco e o soco,
O sonho e um rosto.

A rima sem sentido;
O real, concreto e absurdo.

Da vida aqui parto em retirada,
Esteira estendida e pavimentada.

Levo o sol, a chuva, a caneta,
O papel, a família e a letra.

Alguns amigos e poucas flores;
Me levo, me elevo, meus amores.

O Rosto


Tinha um traçado imaginário.
Sem formas, conteúdo ou modelo.
Era pura abstração e nervosismo.
Só voz distante.
Meses a fio, anos sem parar.
Íntimo feito travesseiro velho,
E misterioso como bolsa de mulher.
Passou por teclados a fio.
Empregos, chefes, cidades...
Situações, amigos e relações.
Uma demora quase perpétua.
Que deu real sensação de infinito.
Chegou a ser sondado, desenhado.
Definido por teorias do sonho.
Visualizado em pedaços.
Penetrante, mordaz.
Insinuante.
Mudo de desfalecimento.
Até aparecer discretamente, longínquo.
Em meio a um sorriso sem jeito, sem hora.
Mais pausa com intervalo menor.
Mais insistência com constância maior.
E veio como presente virgem.
Embalado plasticamente.
Surpreendeu.
Emudeceu.
Estremeceu as bases.
É diferente e igual;
Alegre e casual.
Talvez lânguido.
Ou sereno.
Perdido na multidão.
Procurando dedicatória,
Deliciando a memória.

O que não há

Ia te dizer que... mas sabe aquela hora
Em que as palavras não aparecem, tudo é falho?
Você me perguntou: não sentiu?
Talvez não saiba o que vai acontecer.
E mentiu.
Preferiu se isolar, fingir que não viu.
Mas é assim mesmo, foi como um jogo.
Como um jogo que não aquece.

E ainda quero te mostrar uma foto.

Uma lembrança qualquer.
Um dia, um mês, um traço.
Talvez o horizonte, talvez um abraço.
Eu não morreria por você agora.
Nem me mostraria estranho.
Nem queria um beijo, um afago.
Um sorriso, um ego.
Mas você está próxima.
E vou ver a próxima.
É a sina, é a química.

E ainda quero te mostrar minha foto.

O beijo

Só quero beijo
De durar a eternidade.
Só quero beijo
Daquele que arde.
Quero um beijo,
Um bem molhado
E que deixa o corpo suado.
Quero muito esse beijo,
E quero com vontade,
Saudade e até maldade.
Pode ser só um beijo.
De impulso, de promessa,
Sem jeito e sem pressa.
Eu só quero um beijo.
Um beijo inteiro.
Um beijo festeiro.
Um, um beijo de ti;
O beijo sem fim.

Momento


Você me chama para o futebol.
É interessante,
Irreverente.
E a gente conversa e bebe,
Finge que não é do mundo dos tolos,
Das evidências.
E a gente segue a conversa,
E se pergunta o porquê.
E não quer saber
Se é eterno ou momentâneo,
Pré-fabricado ou instantâneo.
Mas segue a flauta, o lírico;
O poeta, o músico.
E as cordas vão e vem,
Na palma da mão de ninguém.
É simples, compreensível.
Fácil, acessível.
É a boca e o beijo,
A língua e o lábio,
A fala e o hábito.
É ver e não sentir,
Ver e não mentir.
Ser honesto,
Ser sincero.
Querer o resto
É tudo que quero.
É estar aqui e beber.
E a gente conversa e bebe,
Flutua e não sente.

Na carona


Não tem cigarro, acabou a festa.
E você está aqui ao lado.
Não tem sol, restou a fresta.
E você sorri, me deixa calado.
Quer comprar o que não é seu.
Sente frio, mexe os lábios.
Fala de planos, tem ideias como eu.
É amor, sei...
São delírios.
Qualquer rabisco vira escrita.
Qualquer palavra facilita.
E a gente quer mais.
Quer a loucura de frente.
Para achar que somos iguais,
E ninguém mente.
Tudo bem ter confiança.
Não faz mal escolher aliança.
Se a luz fica acesa,
A gente pensa;
Se apaga,
O corpo larga.
Depois vem a conversa.
Junto, a pressa.
Vem o toque,
Vem o leque.
Isso vai ter final feliz.

Manual


Encontrei sua instrução em algum lugar
Que você deixou e esqueceu de procurar.
Se a gente se encontra de repente,
A sua fissura é o meu deleite.

E as regras ficam sempre comigo,
Como segredo no ouvido do amigo.
Você olha, desconfiada, e sorri.
Sabe que futuro escolhi.

Coloquei uma colcha de retalhos,
E esparramei lenços e atalhos.
Com os panos, contei lágrimas;
Com os trilhos, pavimentei ímas.

Dessas partes únicas vieram músicas.
E desses sons, palavras úmidas.
Dessa umidade brotou calor.
E da sua boca, frescor.

Que de tanto espalhar,
Gritou, enveredou pra te ganhar.
Se é que venceu, foi amor.
E se coloriu, costurou.

Remendou o que faltava,
Deu voz a quem cantarolava.
Ecoou, vibrou, encantou.
Encenou, tocou, amou.

Longe e em mim


Como é que eu vou sair hoje à noite
Se não tenho dinheiro para beber?
Se a solidão me acompanha
E a saudade só me traz você?
O que era, de repente deixou de acontecer.
E sem esperar, comecei a encontrar
Motivos para tentar reviver, recomeçar.
Conheci uma paz e um abraço, laço forte
Com medo da chama da morte.
Num canto dentro de mim, coração:
Paradoxalmente cheio e vazio, meio perdido.
Meio achado encontro um rio,
É a emoção do conjunto de várias paixões.
Querendo sempre um pouco mais de carinho,
De calor que protege e de frio que aquece.
Paixão natural pele, pelo, olhos...
Agora as lágrimas escorrem pela janela;
Meu quarto solidário, de beleza singela.
Me mostra o meu limite do pequeno,
Universo de ar, dor, alegria, água, terra.
Será que eu queria estar tão vestido assim?
Prefiro pensar em você, me encantando a qualquer canção.
Apertando, me crucificando em seu corpo
E me guardando dos medos e segredos dessa vida.
Apesar da chuva, a vida continua seca, minha querida.
O pensamento flui suave, a limites extremos
De amor, dor, paixão e tesão. Vivemos.

*Em 1991, com Márcia Barcelos.

Letra A

Quando eu chegar vou olhar fixo seu olhar.
Despir sua alma.
E desvendar a magia do encanto.

Quando eu chegar e te tocar em instinto,
Vou apreciar cada arrepio e sussurro.
E, devagar, puxar a alça do destino.

Quando eu chegar te farei confissão,
Percorrerei seu rosto.
E desfilarei palavras roucas em desatino.

Quando eu chegar e em ti sonhar,
Deve ser o sonho do sonho do sonho.
E vamos alvoroçar nosso outro mundo.

Lembranças


A caneta se esparrama,
É o papel pedinte.
Querendo a hora cerca, a chama,
É o papel adiante.
A voz que não ama,
É o papel delirante.

Você aparece.
Lembra e esquece
A razão que merece.

A voz ilumina,
É luz de menina.
Guarda-roupa que alucina.
É o charme, azucrina.
A voz não anima;
É a letra, a rima.

O tal amigo,
Hora de castigo.
Gosto amargo,
Castigo serrado.
Teto requintado,
Prazer divertido.

Inimizade


Tenho um amigo que toca bateria
E outro que queria.

Tinha uma vida verdadeira,
E vivia de certa besteira.

Tinha uma mulher e nada mais,
Chamava o garçon e pedia paz.

Tinha até um sonho antigo,
E vivia sonhando contigo.

Tinha, quem sabe, uma vontade.
E sentia gosto de maldade.

Tinha uma música na cabeça,
E um corpo que obedeça.

Tinha até você,
E queria só querer.

Tinha planos, filhas;
Canetas e cartilhas.

Tinha o sono,
Tinha o trono.

Tinha o que levar
Na hora de acordar.

Tinha peso sem levantar,
Sem espaço para caminhar.

Agora é só teto desabado,
É só pôquer jogado.

Imagens


Te olhando
Me vendo
Te beijando
Me afogando
Te acariciando
Me acalmando
Te falando
Me ouvindo
Te querendo
Me perdendo
Te amando
Me odiando

Imagem e semelhança

Sabe quando vem uma cerveja
E o hálito refresca?

Sabe quando a gente acha
Que todo mundo ri à beça?

Sabe o que é andar
E não ter pressa?

Sabe quando alguém vai ao mar
Joga a rede e pesca?

Sabe quando tem uma propaganda
E você não se estressa?

Sabe quando não se reclama
Quando uma situação te imprensa?

Sabe quando se chega em casa
E teu filho te abraça?

Sabe quando dá saudade
Tipo "nunca se esqueça"?

Sabe quando te amo
E você não sai da cabeça?

Sabe que os minutos são assim
E nada mais interessa?

História da semana

Diga que sim,
Que quer me ver.
Que quer só mostrar
Um sorriso novo.
Mesmo assim vou te ligar.
É só para te acompanhar,
Ou achar que você quer.
É tão simples, tão físico;
Até matemático.
Acho que vou te ligar.
Mas agora não sei
Se você está no banho
Ou pensando para onde vai.
Mas eu quero, é decisivo
Como seu abraço.
Loucura.
Tudo em vão?
Ou não... ou não.
Vai me dizer que hoje é um pouco tarde
Para me encontrar.
Mas quem sabe conversar?
Sem jogo, sem azar;
Sem fugir, sem achar;
Sem querer, sem beijar...
Vou ficando meio sonâmbulo.
Mudou o calendário,
Baixou o e-mail.
E não tem ninguém.
Você também não tem!
Estou pensando em você.
Em te ligar.
Em te esquecer.
E a gente enfraquece.
Simples e lógicos;
Discretos e cômicos.
Parece um pouco estranho.
Até amanhecer.
Se lembrou, me liga logo.
Prometo atender.
Estou bem aqui: na sua saudade.

Filme sério

Me apaixonei: displicência noturna.
Vontade de te jogar na areia.
Jeito de não dizer nada, nunca.
Sorriso de quem não se chateia.

Você mostrou que trabalho
Só faz perder.
Agora não tem atalho,
Não tem pressa, não tem crescer.

Cruza as pernas, muda o disco.
Quebra o gelo, diz que não é nada disso.

Cada gole é um dia a menos
No calendário da razão.
Ainda há o espaço que cremos,
Ainda há o que conhecem de paixão.

É barba por fazer,
São olhos vermelhos.
É cigarro sem acender,
São espelhos.

Simplesmente são.

Ecos


Sinto a respiração ofegar
Vendo a noite passar.
Fica um personagem abstrato
Sem gosto, cheiro ou tato.
Viver, amar e morrer
É quase igual a beber,
Num bar sem ninguém,
Um conhaque feito refém.
Fumo o cigarro,
Bato o carro
Pra esquecer a insensatez
De quem deixa para outra vez.
Ícones de infância,
Excitante diferença,
De pensar em velhice
Pedindo clemência.
Mantenho a insistência
Exigindo paciência.
Sou eu mesmo, princípio destrutivo
Trajando mármore, nadando no abismo.
E você não vem
No vácuo que mantém.

É como ouvir um blues


A gente tem dez mandamentos,
É como ouvir um blues.

Você insiste em concretos,
É como ouvir um blues.

E conta os elementos,
É como ouvir um blues.

Não responde em sentimentos,
É como ouvir um blues.

De manhã são só lamentos,
É como ouvir um blues.

Dias nem tão cinzentos,
É como ouvir um blues.

E na carteira só duzentos,
É como ouvir um blues.

São frases sem acentos,
É como ouvir um blues.

São dias em tormentos,
É como ouvir um blues.

E restam os momentos,
É como ouvir um blues.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Reflexus


Desculpe o que não fiz;
Deixe o passado menor que lembrança.
Esqueça o medo de ser infeliz
Numa noite sem confiança.
Escreva o que vier na cabeça
E rabisque num papel de cor.
Diga "esqueça"
E aperte as mãos com fervor.
Junte tudo, e todos, e nós;
Gele a cerveja.
Sem música e a sós
Acenda a luz, me veja.

Das coisas que não falo


Hoje vou calar a voz,
Me trancar feroz.
Dormir nos acordes.
Meu bem, acorde!
É o que não se escreve.
É o que não se deve.
Falar, driblar, enrolar
Ouvir, secar, desatar.

Três chamadas no telefone. Assim que termina de fotografar o abdômen, após intensa sessão de ginástica, ela retorna. É José, seu amigo 30 anos mais velho. Quer dicas sobre como driblar a vigilância da esposa naquela noite véspera de Dia dos Namorados.  Conquistou, segundo ele, nova fêmea, a quem chama de "presa". Seus relatos apontam para uma mulher bonita, jovem, apaixonada e ardente - como sempre. Se é fruto da imaginação ou realidade, vai saber!

Desliga o celular, balança a cabeça, abre discreto sorriso e emenda: "Zé não tem jeito, mesmo!". Apesar de muito mais moça, é a conselheira sentimental dele. Tenta entender a situação. É um homem ainda vigoroso, casado há décadas com uma evangélica autoritária - embora condescendente com a vida boêmia que tenta levar nas poucas horas de folga - e frígida após um transplante de fígado que fragilizou ainda mais sua já debilitada saúde.

Disse, minutos atrás, o de sempre. Uma espécie de receita de bolo; o barzinho mais escondido que se possa encontrar numa cidade do interior dia 11 de junho, o motel sem blitz da Lei Seca nas imediações, e duas pastilhas de Halls preto na boca antes de voltar para o lar. Conhece, de cor e salteado, todos esses artifícios. Nunca correspondeu às cantadas do próprio "Zé", mas é vivida o suficiente para saber como driblar situações de policiamento excessivo.

Já foi casada, teve amores, paixões e uma coleção de homens aos seus pés capaz de causar inveja. Não faz o tipo exuberante, mas tem uma beleza peculiar. A pele muitíssimo clara, cheia de sardas, é o cartão de visitas. Cabelos pretos, lisos e longos também ajudam a compor o visual. Magra, cuida do corpo e frequenta a academia mais badalada do lugar para adicionar músculos ao tipo franzino. Abusa do charme próprio e da sagacidade extrema.

Preocupa-se com "Zé". O protege, como se fosse seu pai, ou seu filho. Os sentimentos se confundem. Fato é que tamanha cumplicidade lhe permite participar das mais variadas situações. E de pequenas confusões e princípios de conflito. Como nas madrugadas que, invariavelmente, tem de confirmar para a família dele a presença em sua companhia. Não foram poucas as vezes que mentiu, que inventou festejos ou compromissos profissionais. 

Nem sempre "Zé" se comportou - como se fosse possível naquela personalidade inquieta e careca. Em um ranking próprio, memorizado com os sete anos de convivência, elege uma passagem. Quando o levou para o pequeno município onde nasceu, no interior de Minas, teve que estipular limites e frear o ímpeto sexual de uma das pessoas que mais ama. "Cara, essa loira de vestido estampado é minha mãe!". Ri sozinha, alto, sempre que lembra disso. Como hoje, ainda suada.

Torcedora-símbolo


Vinte e um anos, morena e esbelta. Nini chama a atenção por onde passa. Só que outra característica a fez conhecida na cidadezinha onde mora: é torcedora fanática do Fluminense. Do tipo que acompanha o time pela TV nos botequins e trava batalha verbal com marmanjos que se arriscam a enfrentá-la em debate esportivo. É moça de temperamento forte quando o assunto gira em torno de futebol. Um contraste para quem tem jeito de adolescente brejeira vestida com trajes de menina de grande centro.

O que para tantas jovens mulheres parece fácil - ainda mais para quem tem atributos físicos como ela - se torna um pesadelo digno de divã: não consegue firmar namoro. Até tenta. No sábado à noite bate ponto no clube onde tem banda tocando ao vivo. Escondido dos pais, um casal evangélico tradicional, bebe cerveja embora diga sempre que prefere vinho. Requebra a qualquer som. Vai de rock´n´roll a forró com uma facilidade e um molejo de fazer inveja a dançarina profissional.

Numa dessas noitadas conheceu Carlinhos. Garoto humilde, boa praça e boa pinta. Um olhar atravessado aqui, outro mais profundo acolá... Ele se aproximou e puxou conversa. Coisa boba, como perguntar as horas ou querer saber se estava sozinha. Alguns minutos de bate-papo, um toque no cabelo liso e muito preto dela (parece até uma índia) e já estavam se beijando ardentemente. Ficaram, na linguagem da moçada. Faceiros e salientes, os dois foram cada um para sua casa renovados.

O relacionamento começou a tomar forma. Depois de alguns dias e uma transa ardente no quarto de Carlinhos, veio a decepção: o sujeito é flamenguista. Foram por água abaixo as carícias em fração de segundos. A descoberta aconteceu por acaso: perto do guarda-roupa o namorado tinha uma caixa com livro e outras bugigangas em vermelho-e-preto. Incompatível. Irascível. Sem pestanejar e tampouco se importando com os sentimentos alheios, Nini foi embora. Nem virou o pescoço.

Para falar a verdade, o sonho de consumo sexual da torcedora era um jogador. Da parede rente a cama não sai o pôster do ídolo comemorando o gol de um título Estadual. Para reclamação da mãe, que gostaria de ver na cabeceira da filha a Bíblia Sagrada. Ao contrário do restante da família, até freqüentou, por imposição, a igreja. Quando tomou as rédas da própria vida, abandonou os estudos religiosos e passou a se dedicar, de corpo e alma, aos prazeres da juventude. Sem esquecer os princípios familiares.

Estudante de Pedagogia, sonha lecionar para alfabetizar adultos. É uma espécie de contraponto ao fato de o avô ter conseguido superar a falta de leitura e construído um pequeno patrimônio, herdado pelas gerações subseqüentes. Só não presta muita atenção nas aulas às quartas-feiras. Sim, geralmente tem jogo do tricolor. Leva um walk-man para a faculdade. Daqueles com ponto pequeno, que se encaixa dentro da orelha. Na impossibilidade de gritar com gols, cerra os punhos. É mais ou menos assim seu cotidiano.

Depois que termina de contar a história da caçula, a mãe enxuga, com o dedo indicador da mão direita, uma lágrima solta. Choro de felicidade e orgulho. Em um leito de hospital, perto do pai, havia acabado de relatar para a família do paciente da maca ao lado praticamente todos os traços da personalidade da filha. Ainda estava preocupada porque no município vizinho teria uma festa agropecuária. E, por telefone, Nini já tinha dito que queria ir. Provavelmente para conhecer outro rapaz e esquecer suas loucas fantasias eróticas.

Quase conhecido


Não, não é tão simples assim te cumprimentar. É estender afeto a quem praticamente desconheço de rosto. O que é uma feição? Pode o dicionário explicar como traços simbólicos e identificáveis de alguém. Pelo menos é minha definição sobre. Não te ver, pessoalmente, resume-se a mero detalhe fotográfico. A afinidade singela de frases nunca trocadas até hoje ultrapassa a falta do frente a frente. E palavras poderiam ter apenas sido escritas, transmitidas da frieza dos teclados para as redes sociais. Sem o som que identifique timbres ou deixe rastros de emotividade escancarados ao contato visual.

E foi dessa distante maneira que tentei, em vão, parabenizá-lo. Digitei poucas sílabas antes da conexão à internet desabar. Essa operadora não tem jeito mesmo. Sobram reclamações inclusive no mesmo Facebook onde arrisquei expressar minha admiração logo no dia do seu aniversário. Não importa. Pode ter passado essa oportunidade de calendário; sobrarão chances vida afora. Ou não. Ou até em outras vidas, quem sabe. Quem sabe, até, essa proximidade, essa discretíssima afinidade, não venha de outros mundos, de contatos longínquos e muito, muito inexplicáveis...

Ouvi falar de ti ainda jovenzinho, recém-saído da adolescência. O tio da primeira namorada, quando vinha de outra cidade (interior de Minas), não cansava, durante os encontros familiares, de relatar e enaltecer a amizade contigo. Enumerava as aventuras em sua companhia enquanto dedilhava um bem conservado violão. Fanhoso, às vezes se tornava incompreensível. Tinha vergonha do problema na dicção. Isso o irritava e constrangia. Compensava com o talento musical e a sensibilidade de uma artista adormecido conhecedor da enorme capacidade perceptiva.

Soube também, por notícias via imprensa, de sua entrega ao teatro quando novo. Fez parte de um grupo histórico na cidade, integrado por gente que ganhou notoriedade governamental. Um grupo que te pinçou a vida pública. Não à política. Esta, creio, presente em ti desde quando se entendeu por gente. Acompanhei notícias sobre seu desempenho como parlamentar estadual. As informações sempre destacaram uma honestidade raríssima no meio. Curioso, percebi que ao deixar o mandato não ostentou riqueza. Simples deduzir: não a acumulou, como a maioria, em apenas quatro anos.

Seu nome permeia minha fase adulta. No Rio de Janeiro dividi apartamento com um amigo que se relacionou com sua sobrinha. Ela, também talentosa - e parece coisa de família -, engrossou o coro a enaltecê-lo. É admiradora, fã. Filha do irmão médico, que preferia identificar-se profissionalmente como poeta. E era dos bons. Assim como você, de fino trato com o verbo. Li poemas seus soltos por aí. Certo dia encontrei no supermercado um conhecido, artista plástico. Coincidência ou não, seu amigo e admirador! Mais um para a enorme e incalculável coleção. Destilou maravilhas a seu respeito.

Vi, sim, você. Duas vezes, que me lembre. A primeira na fila do banco, quando estava acompanhado de uma mulher. Talvez a esposa, não posso precisar. Na outra ao volante de um carro estacionado bem em frente a um hospital. Tive vontade de perguntar se precisava de algo. Cansado, vindo do trabalho em outro município cem quilômetros distante, recuei. Resta ler sua página virtual, sempre traduzindo a perspicácia peculiar. Te acompanhar e te curtir, sim. Ainda, por timidez, não te compartilhei. Percebo que elogia duas crianças, imagino seus netos. Então, felicidades! Um abraço.

Pânico no ar


"Boa tarde, amigo ouvinte. Abrem-se as cortinas para mais um espetáculo esportivo em Pinduinha. Os senhores vão acompanhar o confronto entre o Nacional e o Jangadense, pela terceira divisão do campeonato Tancredista. Conosco o comentarista Sávio Amazonino. Ele faz a melhor análise do rádio brasileiro. Os repórteres Armando Zanoto e Luís José Salviano vem daqui a pouco com todos os detalhes dos clubes. A jornada começa agora com o oferecimento da cerveja Balza, o puro malte; das Casas Espíndola, tudo em eletrodomésticos; da loteria do Janjão, onde sua aposta vale ouro; e do restaurante Carne na pedra, o mais gostoso da cidade".

O vozeirão não deixava dúvidas: Fred Scapelloto estava no ar. Como em todas as tardes de domingo, a rádio Pinduinha ecoava nas ruas, carros e casas das redondezas. São oito municípios da serra de Tancredo (novo estado criado pela União) acompanhando par e passo a competição estadual narrada pelo mais famoso locutor da região, funcionário aposentado do banco do governo, que empunha microfones desde adolescente. Mas este não seria um fim de semana comum. Pelo menos para a família e amigos do "trepidante". Como costumava fazer, chegou ao estádio com três horas de antecedência. Mal sabia o que o esperava.

Filho caçula, Alexandre desapareceu logo após o almoço na casa da avó. Foi à calçada colocar a moto para dentro da garagem lateral e não voltou. À princípio especulou-se que havia saído para encontrar a namorada, mas a hipótese acabou descartada após ligação de Flávia para a matriarca da família de descendentes italianos. O celular chamou até cair a ligação. Nada de alguém atender. Foi assim até o início da noite. Por volta de cinco e meia, de tanto insistir, dona Marluce consegue ouvir uma voz do outro lado da linha. Alguém rouco, informando que o rapaz não voltaria antes do pagamento de um resgate de trezentos mil dólares em dinheiro.

"E lá vai Sabino. Recebe na direita, tenta passar pelo lateral e a bola sai pela linha de fundo. É escanteio. Canhotinho vai jogar na área, Zanoto!" "É verdade, Fred. Ele treinou durante toda a semana. O zagueiro Orelhão vai tentar a cabeçada. Vem ela aí, Scapelloto". "Canhotinho cobra, a zaga rebate, Toinho bate e é gol. Gooooooooooolaço do Nacional. Toinho, camiza dez, aos quinze minutos do segundo tempo. Vibra a torcida azul. Agora no placar: Nacional, dois; Jangadense, um. Zanoto!". "Ele veio na corria, nem deixou a bola quicar e chutou de primeira, no canto do goleiro Anselminho. É o décimo gol de Toinho, artilheiro da competição".

Enquanto Amazonino comentava o lance, tremeu o telefone de Fred, colocado no bolso esquerdo da calça. Os sequestradores exigiram a recompensa sem mais delongas. Atônito, o radialista não soube o que fazer. Não dispunha de tal quantia. Fez sinal com a mão direita para Sávio esticar falatório. O próprio Alexandre indicou a senha de concordância: ele deveria ler, três vezes seguidas, o anúncio da Balza. Assim foi feito. Como uma mágica, Fred Scapelloto pegou um binóculos jogado na cabine e enxergou o pimpolho no meio da arquibancada. Engasgou e atirou longe o enorme fone de ouvidos que usava há mais de uma década.

Copo ao alcance. Duas, três goladas. Suficiente para acelerar o ronco. Novamente sonhos confusos. Filho sorrindo, caneta falhando, mulheres reclamando, time perdendo, trabalho escravizando, gente chantageando... Teve de tudo um pouco. Eram rompantes, delírios quase verdadeiros de realidade clara, absoluta, eminente e absurda. Mistura de formas e rostos, vertentes e mentiras. Mistério, por assim dizer.

O encontro

Paciente chega com profundo corte no supercílio esquerdo. Muito sangue logo estancado. Limpeza com fibrase e aplicação de povidine resolvem o problema. Pouco depois é um diabético com furúnculo no dedão do pé direito. Procedimento semelhante, com os cuidados peculiares para quem sofre com disfunção da glicose. Olha o relógio e vê que não vai dar tempo de chegar logo. A prioridade são os atendimentos de emergência.

Saque do levantador. Com efeito. Erro na recepção, bola junto à rede e o atacante não supera o bloqueio duplo. Faltam dois pontos para o time da casa fechar o primeiro set. É o que acontece quatro bolas depois. Rápido gole no energético, ouvidos atentos às ordens do rigoroso treinador e já está de volta para comandar a equipe contra o líder da Superliga Nacional. Observa a arquibancada e não encontra quem esperava.

Um auxiliar de enfermagem faltou ao serviço. Mandou dizer, por telefone, que o filho adoeceu de novo. Justo o sujeito cheio de bossa e repleto de desculpas, o mais competente. Na falta do profissional de confiança, tem que trabalhar com aquela gorda baixinha de quem antipatiza. É porque precisa sempre repetir as instruções para curativos e sabe que o resultado final não vai ficar à seu feitio. O mau humor é evidenciado na respiração.

Põe a mão para trás e indica o número da jogada exaustivamente ensaiada. Uma violenta paralela, com o ponta fazendo "corta-luz". Na terceira tentativa dá certo. Bola no chão, vibração e abraços. Outra "passada-de-olho" no meio da torcida, no lugarzinho costumeiro. Pensa que ela não conseguiu chegar por algum imprevisto. Tinham combinado tudo certinho. Já era tradição nos jogos de noites de quintas-feiras.

Dessa vez a ambulância vem com um idoso. Suspeita de enfarte. Rumo à sala de reanimação, trinca os dentes e se desespera emocionalmente. Diagnostica, algum tempo depois, a possibilidade de inflamação no pericárdio, a membrana que envolve o coração. Informa ao acompanhante, um filho de aproximadamente quarenta e dois anos, a suspeita de pericardite. Apesar da gravidade da situação, a perspectiva de recuperação é plausível.

O último set já está na metade. Tie-break. Tirado repentinamente, vai para o banco. Não presta muita atenção na movimentação em quadra. Quer o toque feminino, o afago, os carinhos... Volta à equipe. Faz um ponto e defende outro. Encharcado de suor, vibra intensamente. Retoma o estado normal e, por tabela lógica, a concentração. Empurra os companheiros à vitória dramática, apertada!


A médica, enfim, pisa no ginásio. Já encontra o marido saindo de fininho. Comentam o resultado, os lances, o que poderia ter acontecido se houvesse derrota... Vão jantar antes de ir para casa. O jogador, na porta do vestiário, dá de cara com a namorada, uma atleta do juvenil, de 19 anos, e a afaga. Partem de carro e param no mesmo restaurante do outro casal. Se reconhecem, mas não trocam palavras. Nenhum sinal. Os quatro apenas sorriem, intimamente.

História de pescador


Cinco e quinze da tarde. E nada do pai chegar. A hora passa rápido. Os ponteiros do relógio parecem não notar a sua angústia. Ele tem raiva. Queria que fossem mais sensíveis à sua paixão. A essa altura, à sua preocupação também! Mais três minutos e nenhum sinal. Nada estranho para quem não tem hora certa para voltar. Trabalho de assalariado, o filho entende. Patrão, e principalmente o chefe (daquele tipo que tem síndrome da pequena autoridade), esfolam o couro no emprego mesmo. Implacáveis.
- Logo hoje? - , questionou, irado.
Pelas suas contas era praticamente impossível dar tempo. A matemática, de tão simples, passou como um flash em sua mente; são, no mínimo, duas horas e meia até o estádio. Aflição. Sentado no sofá desbotado, espumas à mostra, chora intimamente. Desiste. Vê que a dependência da liberação é quase sinônimo de escravidão. Em qualquer sentido. É perceptível! O sofrimento até dá uma trégua. Até amortece.

Quando já é hora do jogo, liga o rádio. A seqüencia básica da audição segue o fluxo inabalável da receita pré hora esportiva: o locutor chama o repórter de campo (em emissora do interior é assim: um só cobrindo tudo), que passa as escalações e o banco de reservas. Em seguida vem o comentarista, voz balzaquiana, jeito auto-confiante, analisando o "um-à-onze" das duas equipes. E o pai, nada!Trila o apito. À essa altura, já tinha virado neurose de filho. Sabe como é, né: da poltrona os pensamentos e preocupações fluem. Até que, bola na rede pela asegunda vez, a porta abre! É vibração intensa. Não estar na arquibancada passou a ser insignificante. O gol do artilheiro, também! O "velho" sobreviveu a mais um dia de batalha. E abriu a fechadura com um sorriso de quem passou o dia jogando bilhar. Inacreditável a alegria retida em seus músculos.
Vai para a cama quase sonâmbulo, quase embutido de um sentimento conflitante. Totalmente renovado. E até feliz!

Dorme.
Na concentração, o zagueiro botinudo e capitão diz que o técnico chama. Dá tempo de mal esfregar os olhos e lavar o rosto. Abre a carteira, vê a foto da família. O pescador que sustenta a família de nove filhos estava lá em Aracaju. Acompanhando, como sempre, sua performance pelo bom e fiel amigo de pilha.
A rotina muda-de-roupa/embarca-no-ônibus/chega-ao-vestiário/vê-todo-mundo-nu/ se repete. O esquema com três defensores dificulta um pouco. Sua habilidade em sair jogando e buscar a bola fora da área é prejudicada pelo rígido, quase inabalável, esquema tático.
- Isso é para centroavante grandalhão, que só usa o cabeceio - , pensa justamente na hora de mais um escanteio batido aberto pelo lateral direito.
Acaba a partida. O empate no campo apertado, contra um aguerrido escrete local, até que foi bom resultado. Volta para a cidade grande mas não tem jeito: nada, nem a loira mais boazuda, o faz esquecer. Tudo bem que jogar em clube grande é comum o cara ter o que quer; mordomia, mulheres e até... Ah, isso não faz sua cabeça mesmo. Mas chega a incomodar ver colega de elenco deixando o vício espirrar a carreira no ralo. Continua fixado no Nordeste.
- Ele bem podia estar aqui - , vislumbra.

Desperta de manhã cedinho.
Balança a cabeça e parece não entender direito o que aconteceu. Foi bom enxergar um destino. Duro é encarar a realidade. Ouve um chamado.
- Ai, vou ter que ajudar - , lamenta-se.
Escovando os dentes vê no espelho a imagem de um sonhador. Triste. Desanimado.
- Bem que a bronca do treinador podia ter sido verdadeira. E a torcida vibrando, idem -, arranha os dentes. Mas sabe bem dos traços do dia-a-dia que vão rabiscar mais uma página da sua sofrida e sensorial rotina.
- Vou lançar a rede e esperar pelo lampejo do mar - poetisa.
Até volta cedo. O barco da colônia que o pai gerencia (e dá graças a Deus de conseguir mais um trocado por isso) atrasa.
Cinco e quinze da tarde. Tem um campinho de futebol-de-areia improvisado.
Desce correndo, ajuda a pôr o camarão em baldes de gelo e isopores. Pede para ser liberado ao fim da função.
Consegue.
Corre, serelepe, para a pelada. Entra no time-da-cerca. Faz três gols. Volta para casa. Oito e trinta e cinco. Busca a geladeira. Pega uma latinha. E liga o rádio. É quinta-feira. Vai saber dos resultados de hoje. Seu time jogou ontem. Agora não precisa se preocupar em ver a partida ou não. O "coroa" já está lá dentro. E bebe uma com ele. Sem compromisso, vão ouvir, calmamente, o locutor chamar o repórter de campo para passar as escalações...

Frio na barriga

Levanta o dedo e chama o garçom. Pede uma picanha ao alho bem passada na chapa. Comenta com o colega de time, sentado bem à sua frente, o gosto por carnes. É interrompido silenciosamente pelo franzido da testa do companheiro de almoço. Vira-se para trás. Vê uma loura de corpo escultural, cabelos lisos pouco abaixo do ombro, entrando na ala reservada do restaurante. Está com um homem baixo, barrigudo, vestido discretamente. Ela percebe sua excitação instantânea e não corresponde. Abaixa a cabeça e dobra à esquerda.

- Acho que é garota-de-programa. Só pode. Não ia estar com um sujeito desse - analisa o amigo.

Mudam de assunto e esquecem a tal criatura. Passam a falar da dificuldade em jogar fora de casa. A equipe deles disputa a Liga Nacional de Basquete Masculino Adulto. Ocupa uma posição mediana na tabela. Está até perto da classificação para os play-offs das quartas-de-final. O problema é vencer em quadras adversárias. No próprio domínio, ao contrário, o retrospecto e a torcida ajudam. Tinham pontos em comum dentro e fora de quadra. O armador é casado com uma prima do ala, a quem conheceu por intermédio dele próprio quando atuavam no interior de São Paulo.

Conta paga, hora de ir embora. Quando dá dois passos, lá está a mulher que entrou com um vestido branco capaz de tirá-lo do sério. Trocam um olhar profundo, cúmplice. O fiel escudeiro reage. Cutuca-o com o dedo indicador da mão direita num misto de inveja e elogio. Andam até o estacionamento, que fica na rua transversal. A imagem daquele rosto sapeca não lhe sai da cabeça. Dá uma carona ao parceiro. Quinze minutos depois está sozinho, dirigindo calmamente pela cidade. Não é dia de treino.

- Ir para casa agora talvez não seja uma boa idéia - pensa, enquanto repara o celular no console do carro.

Pára em uma das poucas bancas ainda com jornal às três da tarde. Lê, de novo, os comentários sobre sua atuação na noite anterior. Sorri. Havia sido o cestinha da partida, com 28 pontos. E logo ele, que joga, na maior parte do tempo, longe do garrafão. Só que a pontaria quase infalível da zona de três garante a boa performance. Tentado, pega a parte de classificados. vai na última página de propósito. O anúncio sob o título "Belas e discretas" acelera seus hormônios. Liga. Exige uma morena jambo, estilo capa de revista, e que saiba conversar.

Estaciona em uma rua movimentada, no Centro. Encosta na porta da BMW 325i que comprou no final do ano passado com a premiação pelo título brasileiro em seu clube anterior. Balança a cabeça com sinal de positivo, entra, abre a outra porta e parte rumo ao motel. Fala pouco, mas ouve que a prostituta não se considera como tal. Educada, está na região há pouco mais de u m mês para fazer faculdade particular. Tem um sotaque mineiro atraente. Só o decepciona porque impõe muitas condições ao sexo. Acabam tendo uma relação fria, que só serve para relaxar alguns músculos do atleta.

Chega ao apartamento alugado pela prefeitura local, que arca com as despesas do elenco, por volta das sete da noite. Toma uma ducha. Assiste ao video-tape de uma luta de boxe (o segundo esporte de sua preferência) e ao Jornal Nacional. Sai às dez horas para encontrar a esposa, aluna de Enfermagem em uma universidade para a qual conseguiu transferência recentemente. Na porta da unidade de ensino, praticamente repete a cena do meio da tarde. Gosta de ficar do lado de fora do automóvel, observando o movimento enquanto aguarda alguém.

Tocam em seu ombro.

- Amor, queria te apresentar minha amiga. A gente conversa bastante e hoje, no intervalo, lanchamos juntas. Descobrimos muitas coisas em comum...

Não consegue ouvir mais nada. Pálido, imagina que aquela transa inconseqüente de R$ 100 com uma "universitária do prazer" pode custar seu casamento.

De bandeja

Está acima do peso. Sabe disso. Jaleco verde aberto até o último botão, deixa à mostra uma blusa de cóton. Justa. Branca. Quase transparente. Vergonha pelo excesso de gordura nos quadris fica para lá! Até se acha interessante mesmo equilibrando a sobrevivência entre as mesas. É um quiosque à beira-rio. Quase nove-da-noite. Quase ninguém. Vai trabalhar até "Deus sabe quando".
É mulher apaixonada. Amorosa. Sexualmente ativa e fogosa.
Sua relação não é atípica. Sabe, entre servir uma cerveja (nem tão gelada, é bom citar!) e beber um copo d´água, que o "cafajeste" é sujeito esponjoso. Do tipo "parece-um-canalha/me-faz-feliz". Ele a troca facilmente por qualquer conversa de boteco.

Tevê no 20. Quarta-feira, nove e quarenta da noite. Horário padrão. E patrão de sua leveza, de sua diversão; da paixão... da nobreza!
O time entra em campo.
A mulher chega, vê a cena, e pega no sono. É instintivo.
Conversa com o travesseiro.
 - Ele não tem outra - resmunga o ciúme. E não tem mesmo. Não tem rabo-de-saia adolescente. Não tem a tentação porta-de-escola.
Até parece isso. Mas é puro instinto masculino.

- Homem que é homem gosta de futebol - , firma-se esparramado na cadeira de plástico que ganhou em dívida de sinuca. Nem olha para o quarto. Nem pisca.
- Só vou tomar a penúltima e já volto - , murmura sozinho, enquanto fecha lentamente a porta da sala crente que ninguém o percebe. Nem deixa um bilhete sequer.

É naquele barzinho, cem metros de casa, a quase desgraça da relação. O alívio do dia-a-dia.
A tentação mordaz.
Foi para lá no intervalo do jogo.
Chegou até o chefe da mulher que, sozinho assistia, pálido, a derrota do time de ambos.
Apito final, resultado adverso. Nem ligaram. Estavam já na quinta garrafa. E beberam mais seis. Buscaram a última.
- Quem já está em onze, completa logo meia-caixa - , bebericou o marido da garçonete.

Ficaram até três e quinze no bate-papo "futebol-dinheiro-desilusões-mulheres".
Volta quase às quatro. Puxa o cobertor bem de leve, quase denunciando um crime inafiançável. Ela percebeu. Abriu os olhos, sentiu a catinga-de-cachaça. Nem olhou para o lado. Está acostumada. Não falou nada.

Dia seguinte, o patrão, inocente, comenta a bebedeira.
Sorriso nos lábios, trabalha faceira. Louca para chegar na cama e encontrá-lo de novo, de qualquer jeito.

Centro de cidade


O cotidiano é realmente intrigante e surpreendente. Uma espécie de professor invisível. Dia desses passava pelo Centro da cidade. Um senhor já aparentando ingresso na casa dos 60 deixou, sem querer, a carteira ir ao chão. Como vinha logo atrás, pus o instinto filantrópico a funcionar, na melhor intenção de ajudar ao pobre homem que, com toda certeza, teria muitíssimo trabalho para tirar a segunda via dos envelhecidos documentos.

Abaixei-me, mesmo sofrendo com as fortes dores provocadas pela hérnia de disco que não sossega quieta a uma pequena queda de temperatura, e apenhei o objeto. Mal consegui esboçar um grito de “meu senhor”! Tarde. O espertinho já havia dobrado a esquina, todo serelepe, com uma rapidez impressionante para a idade. Sem se dar conta da perda. Nem olhou para trás. Não colocou a mão no bolso da calça, gesto típico de quem percebe a queda.

Como curiosidade mata, resolvi pôr os olhos no pertence alheio. Pronto, descobri de quem se tratava: aposentado por invalidez (pasmei!), casado e pai de três filhos. Pelo menos era o que constava, superficialmente. Dono de um nome extenso e de fácil assimilação. Se chamava José Aparecido Cordeiro De Melo Cardoso Filho. Assim mesmo, com o D maiúsculo. Deve ter herdado do pai, homônimo não fosse o último nome. Um velhinho simpático à primeira foto.

Após analisar detalhadamente os papéis, cheguei a seguinte interrogação comigo mesmo: pra que é que nós precisamos de tantas provas se só temos uma identidade? Interrogações filosóficas de lado, prossegui na intenção de levar o achado a algum veículo de comunicação social ou delegacia de polícia que pudesse localizar o indivíduo. Procurei também, em vão, um guarda municipal disposto a ajudar na busca.

Como qualquer área central de município interiorano, percorri todo o comércio e parei no mesmo lugar. Desta vez não foi o criminoso que voltou ao local do crime. Para minha surpresa, lá estava ele: justamente o senhor de quem eu havia achado a documentação original e alguns trocados. Conversava sossegadamente com um rapaz na porta de um boteco enfeitado com pôsteres do América. Me aproximei, ansioso pela devolução.

Ouvi alguém dirigir-se a ele como “Seu Zé”. Sem pestanejar, rapidamente interrompi o talvez proveitoso e descontraído papo.
Relatei o acontecido.

- Coisa da idade, meu filho. Não é a primeira vez – revelou em voz suave, com ar despreocupado e agradecido.

Fui para casa com a leveza proporcionada pela sensação do dever cumprido. E intrigado.
Por que eu estava tão preocupado enquanto ele, sorridente, nem se alterou?

Só pode ser coisa da idade.

Beijei o Cazuza


Via a vida pela óptica da escolha. Não entendia a dúvida interna entre pudor e poder. Preservava-me dos meninos afoitos. Aos tímidos, oferecia um pouco além. Doava sensações, indiscretamente. Preferia sempre, indistintamente, os cautos. A estes permitia língua, toques e retoques sensuais, provavelmente além do limite imposto socialmente à minha tenra idade. A maneira de protesto e firmamento prevalecia.

Era o inconsciente de menina interiorana da década de 80. Sentia os seios crescerem, percebia lubrificação vaginal. Detalhar os motivos era pensar como adulta, ou adúltera. Em determinado momento, as palavras pareciam sinônimas tal exercida chibata paterna. Ouvir que moça tinha o casamento pré-marcado parecia comum, simples, trivial. Menos para mim, revolucionária desde as letras iniciais. Questão de personalidade desvirtuada, sei lá...

Identifiquei-me, sempre, com homens. Deles prezo amizade, fidelidade e respeito. E tesão, que eu conseguia reduzir a tiquinho. Não importavam tentativas e blefes. Sobressaia a integridade dessa troca miúda. Árdua em apartar avanços, próspera no conceito divisor de águas ao qual perseguia e acreditava. Fidelizei-me. Consegui - loura, linda e desejável - conquistar lugar altivo, inatingível e respeitável na macheza.

Foi, sei, com meu jeito berçário de sinceridade. Adicionando pitadas de desbocamento e, forçosamente, firmamento de pensamento. Não podia, de jeito algum, me deixar vencer por atrações momentâneas, paixões sem sentido, ilusões infantis. Crescia e amadurecia, ali, minha alma feminina libertária. Excêntrica para alguns, estranha no seio do lar e admirada pelas amigas. E, especialmente, pelos rapazes.

Ganhei altura, cabelos e peso. Aos 17 mandava em mim, contestava pai e mãe e liderava a trupe. Com discurso veemente, visceral, temperado de pitadas de irresponsabilidade e genialidade em doses até hoje insanáveis, lá fui eu caçar ingresso para o show do Barão Vermelho na terceira cidade vizinha. Era procura frenética, alucinada e quase inalcançável em pleno 1984. Apoio, zero. Dificuldades, milhares. Pensar em desistir, jamais.

Consegui, com míseros trocados, o bilhete para a apresentação. Peguei carona num fusca 68. Encontrei colegas, levados pelos pais. Assisti, vibrei e decidi algo a mais. Queria ver o grupo pessoalmente, no camarim. Sugeri-me ao segurança. Passei. De repente estava lá. Foram cinco minutos. Cazuza me conduziu à porta. Abracei seu pescoço. Nos beijamos alucinadamente. Tiveram de apartar. Seus lábios guardo como troféu até hoje, 29 anos depois.

A solução


O carro para no sinal. Vem uma lourinha de mais ou menos um metro e sessenta e cinco. Aquele tipo que passa despercebida em uma festa mas que, invariavelmente, acaba virando o pescoço masculino para trás nas calçadas. Era uma, entre centenas, de distribuidoras de folhetos da cidade. A calça jeans justíssima, curvilínea, abaixo da linha da cintura, chamava mais atenção que o tal papelzinho anunciando uma loja de informática com todo tipo de computadores e acessórios.

Vidro do motorista abaixado, mão esticada, e um rápido olhar no panfleto, que logo vai parar sobre o painel. Ajeita o retrovisor, vê o filho de seis meses dormindo no bebê conforto preso pelo cinco de segurança no banco de trás, pisa a embreagem, passa a primeira e acelera. Segue com a mania de dirigir apenas com a mão esquerda, enquanto a direita fica sobre o câmbio. O calor é intenso. Nem o ar-condicionado dá jeito. Põe no dois, no três... Aperta o botão da circulação.

Deixa o neném com a mãe dele porque tem que treinar. Para variar, está atrasado. Chega ao estádio esbaforido mentalmente. Aos 32 anos, 13 de futebol profissional, sabe que o rendimento não é o mesmo. Bom foi quando, aos 19, arrancava pela esquerda, dava um corte seco no beque na diagonal da grande área e já batia firme na bola, sem chance para o goleiro. Fazia isso até nos recreativos de sábado pela manhã sem se importar quem tinha pela frente.

Agora tem que jogar com a cabeça. Recuou do ataque para ser o quarto-homem-de-meio-de-campo. Ainda lida bem com os dois pés. Cabelo ralo, feição madura, é chamado de "tio" pela molecada que saiu recentemente dos juniores. O preparador-físico, um sujeito mais novo que ele, já está lá no círculo central. Apito na mão, ordena "piques-curtos" entre as balizas fincadas no gramado. Um exercício chato, mas que tem como finalidade aprimorar o "jogo-de-cintura" dos atletas.

Pensa no filhote, na separação, nas brigas com a ex-mulher... Lamenta ter perdido a grande chance da carreira, quando foi vendido para o time da capital ainda novo. Lá até que foi bem. Depois perdeu espaço por causa das noitadas e, especialmente de alguns "rabos-de-saia". Bonitão, fazia sucesso fora das quatro-linhas também. Devorava tudo que lhe era apresentado. Foi parar no Nordeste. Rodopiou ainda pelo interior do Rio Grande do Sul indicado por um técnico fã de seu estilo agressivo.

Cotovelos na cobertura do banco de reservas, observa a movimentação. Não aguenta mais ter que dar explicações sobre sua vida pessoal para justificar as ausências no horário marcado. Simular contusão é feio e contra seus princípios. Faz o sinal da cruz. E cara de poucos amigos. Ouve um "vem correr com a gente". Dez voltas no circuito improvisado. Alguém comenta sobre o sol. Diz dois "e aí" e um "foi mal" a manhã inteira. Embaixo do chuveiro, refresca a alma.

Almoça no restaurante de um dirigente do clube, acompanhado do herdeiro resgatado poucos instantes atrás dos braços da avó. Mais uns carinhos no baby e é hora de levá-lo embora. Troca meia dúzia de palavras com a ex. Sorri quando o porteiro do prédio onde morou diz que apostou em um gol dele no fim de semana. Perde dez minutos de prosa com o camarada, um negro alto, que até daria um bom zagueiro pelo porte atlético. Sozinho, parte novamente. Sem muito destino, dessa vez. De tarde, sempre gostou de tomar uma cerveja. Mas a taxa elevada de ácido úrico não deixa.

Passa no mesmo cruzamento do início da manhã. E lá está a garotinha sapeca, ainda com algumas folhas. Dá uma espiada mais insinuante e se surpreende quando ela o fita. Massageou seu ego de macho. Imagina as peripécias da qual não é capaz. Estaciona em frente ao rio que corta a cidade ao meio. Não sabe como vai fazer agora. Uma coisa é certa; mesmo com o baixo salário e todas as dificuldades que virão, não concorda com o aborto que a namorada, grávida de quatro semanas e meia, quer fazer.