quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O caminho que segui

Engoli o Gim. Duas doses. De vez. Minha garrafa, roubada do que sobrou de uma noite de esbórnia entre playboys e patricinhas, fica guardada no armário. Fosse cofre, seria meu tesouro. É também através daquele gargalo que sai minha coragem. Pus o uniforme. Como sempre, a camisa estilo social bege, gola vermelha e preta, de botões. Deixo os três primeiros abertos de propósito, a mostrar parte dos volumosos seios. Uso, quase sempre, sutiã branco bordado meia taça. Adoro provocar e contrasta com a pele negríssima. Já é, tenho consciência, minha profissão instintiva, intuitiva e lucrativa.

Apesar do colo, sei que os olhares vão para outro lugar. A calça marrom estilo secretária, justíssima, deixa minha enorme bunda ainda mais em evidência. Nos dias que me sinto mais quente, ainda ponho um saltinho. Arrumo o cabelo cacheado no espelho, abro o sorriso e mergulho de cabeça no fim de tarde. Sirvo primeiro uma família de prumo tradicional. O homem grisalho senta à cabeceira e parece um Sheik. Todos o aclamam. Dá as ordens. Gesticula. Fala alto. Se impõe, deixam de propósito. É grosseiro comigo. Me trata como empregada, sabendo que não sou.

Depois de atender a um jovem casal de pombinhos vou de novo ao banheiro atrás de novo gole. Subo as escadas rapidamente. Sinto um dedo me tocar por entre as pernas. Já preparando o tapa, me surpreendo ao perceber que o autor da provocação foi justamente o coroa imbecil. Ele fala umas merdas, tenta me convencer a transar depois do expediente. Só não quebrei uns dentes do cara por clemência ao emprego. Dedo em riste, me impus. O nariz do branquelo ficou vermelho por fora. E o meu, nervosa que estava, por dentro. Dei duas talagadas, cheirei uma carreira inteira. E voltei como se nada houvesse.

Por volta de onze e meia terminou o expediente. Eu tinha, contados, trinta e seis reais na carteira. Mais os quatorze da passagem, cinquenta. Consegui um bonde até o Centro. Andei uns 800 metros e fui até o restaurante antigo, onde trabalhava no início do ano. Logo na entrada um homem, tipo 40 anos, me abordou. Era cliente contínuo e sentiu minha falta. Primeiro gesto de carinho verdadeiro do dia, mesmo percebendo que ele queria, assim como o babaca anterior, me comer. Esse, por sorte, era educado e sabia tratar uma mulher. Para me desvencilhar, o socorro imediato de uma amiga prestou.

Ela me disse que, ao contrário do que eu imaginava, o almofadinha era gay. Tricô para lá e para cá, escapuli e dei mais um tapa no pó. O celular tocou. Não acreditei ao reconhecer o número de um velho conhecido, que já tinha me ajudado anteriormente. Só disse, ao saber onde eu estava, que usava cavanhaque agora, estaria em um Renault amarelo, e chegaria em 15 minutos. Pontual. Embarquei, cumprimentei-o com dois beijinhos no rosto e partimos. Sem perder tempo, foi direto ao novo Motel da cidade, em uma estrada estadual que vai até o município vizinho.

Confesso que gostei da ousadia. Não foi surpresa. Já tínhamos feito isso antes. Ele me pagava sempre R$ 100. Dessa vez deu R$ 150 por um boquete e uma trepada gostosa, com direito ao cu. Não usou camisinha. E nem eu pedi. Gozou fora, graças a Deus. E ofereceu carona. Ponderei que era longe. Ele argumentou que iria me fazendo carícias. E fez, mesmo. Mãos na coxa, no pescoço… Lambi os dedos dele agradecida e, posso afiançar, honrada. Com as duzentas pratas da féria vou ajudar no tratamento de meu afilhado, Down. Deixei o dinheiro embaixo da garrafa verde de café, na cozinha. Amanhã é outra noite.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

O foco no guarda-chuva

 
 
 
 
 
 
 
 
 

No meio do caminho entre os pouco menos de nove passos até o banheiro, a ideia. Eram sete da manhã de hoje, terça-feira, 26 de novembro. Ao ver pelo basculante que a chuva, insistente desde sexta-feira passada, teima em permanecer, pensei na Sony H-09 de pouco uso atual. Chegou o dia de manuseá-la, de novo. E o pretexto é justamente o mau tempo. Utilizá-la como meu olhar, por onde andasse, até a volta à casa, pareceu irresistível e palpável.

Assim surgiu o planejamento de um ensaio sobre a chuva. Que se transformou, aos primeiros cliques, em "Ensaio sobre o guarda-chuva". Estão as fotos que fiz da janela do Sindipetro NF, em Campos; da poltrona do ônibus na ida para Macaé; e da fresta para o calçadão do Centro macaense no meu trabalho lá na Secretaria de Comunicação. É minha trajetória diária. Aí vai o resultado. Bom, médio ou ruim. Ou não. Amigos fotógrafos, sinceras desculpas. Puro impulso. Só.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Curva

Não sei se marginal, vertical ou natural.
Se escrevo, devo ou atrevo.

Não sei se ocidental, abissal ou vegetal.
Se levo, servo ou elevo.

Não sei se vinho, moinho ou caminho.
Se céu, véu ou fel.

Não sei se bagunça, perseverança ou lembrança.
Se meu, seu ou eu.

A letra ainda cabe na palavra

Rio, ria.
Zombeteiro, bombe.
Mudez, ouça.

Ressentimento, esfria.
Chão, zombe.
Censura, desapareça.

Vida, cria.
Desamor, trombe.
Nós, esqueça.

sábado, 23 de novembro de 2013

Desbancou a relação

Gilberto chegou ao banco esbaforido. Um cheque de R$ 2,5 mil não tinha entrado na conta. Faltou identificação do beneficiário. Na maquininha digital, logo após a porta de vidro que separa os caixas eletrônicos do restante da agência, pegou a senha de número 103. Ouviu o chamado da 90 antes de acomodar-se na terceira cadeira da segunda fileira de confortáveis assentos avermelhados. Pensou na hora de voltar ao trabalho o mais rápido possível. O tempo corre rápido.

De repente entra no recinto uma mulata alta, magra, de camiseta preta bordada nas alças e minúsculo short amarelo - desses modernosos, que parecem saia quando vistos de frente. Apreciava através dos estratégicos óculos escuros. O distraiu por alguns instantes. Mesmo o forte ar condicionado não impediu que suasse a testa, reação orgânica característica para refletir a ansiedade. Quando finalmente chegou a vez explicou o caso ao caixa, um simpático rapaz identificado como Everaldo Modesto no crachá.

O bancário ergueu a sobrancelha esquerda e, quando se preparava para roer as unhas, teve o pensamento interrompido por Laiz, a estonteante morena sentada ao lado. Ela indicou o caminho a ser trilhado. Ambos precisavam, contudo, do gerente Teobaldo Américo. O chefe havia saído para almoçar. O identificaram como um homem baixo, calvo, vestido com uma camisa azul listrada de mangas compridas e mochila nas costas. "Ele saiu na mesma hora que o senhor chegou", informou Everaldo.

Foi o homem que tropeçou no pé de Gilberto na porta da agência. "E eu ainda o xinguei de tudo que foi nome", pensou, ao lembrar da reação. Com a previsão de uma hora para o retorno de quem poderia salvá-lo, resolveu esquecer o calor e dar uma volta no quarteirão. Tomou um sunday de morango ao salgado preço de R$ 3,50. Andou quase um quilômetro. Reparou intensa movimentação de carros de polícia. Deu de ombros. Pareceu um alvoroço qualquer, sem sentido, para chamar a atenção e dar a falsa sensação de agilidade.

Retornou antes do previsto. Sentou novamente em uma cadeirinha vermelha, desta vez próxima ao banheiro. Surpreendentemente ouviu um som familiar vindo da direção do sanitário masculino. "Claro que sim. Não tem como esperar. E vai ser hoje", dizia a voz que, segundos depois, Gilberto reconheceu pertencer a um jovem rapaz, barbicha rala, alargadores nas duas orelhas e com o livro "A obstrução programada da Via Láctea" nas mãos. Quase no mesmo instante, recebe um SMS de Teresa, amiga que insiste em dar em cima dele.

Tinha o link www.rondapolicialregional36h.net/noticiasdodia/corpoencontradoemvalao
Clicou e leu logo no primeiro parágrafo: "A moça de 17 anos, desaparecida há uma semana, está mesmo morta. O suspeito de ter cometido o crime é um estudante de astronomia..." Lembrou de não ter visto Amanda, a namorada do vizinho esquisitão, nos últimos dias. Gelou a espinha. Ele parou ao lado de Gilberto, abaixou-se, e balbuciou baixinho, em tom afetadíssimo: "Vou para Londres, fofinho".

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Pronta para o prazer

Um pequeno contratempo na calça jeans clara, recém-adquirida, quase fez Lourdes perder a hora. Mesmo com a temperatura relativamente baixa, o jeito foi apelar para o vestido justo floral, palmo e meio acima dos joelhos, zíper nas costas. Mal deu para se ajeitar, borrifar uma "misturinha mágica" no cabelo, passar glitter azul e preto no entorno dos olhos, pôr a apertada sandália bege, pendurar a bolsinha preta e partir. Chegou esbaforida no ponto, ainda a tempo de ser uma das últimas passageiras a embarcar no ônibus.

Não ligou para os olhares atravessados de toda ordem. As mulheres mais velhas a fuzilavam, misto de decoro e inveja. Os rapazes, era visível, imaginavam despi-la. Até o trocador e, depois, o motorista, apreciaram partes das coxas e, principalmente, sua exuberante bunda. Os quarenta minutos dentro do coletivo pareciam uma eternidade. Por volta das oito da noite Rogério a esperava no lugar marcado, espécie de refúgio dos dois: um quiosque encravado numa ruela entre duas das avenidas mais movimentadas da cidade.

O avistou logo na esquina, onde crianças se divertiam com brinquedos de madeira. Para ela, fogosa, encontrar o amante também era uma espécie de playground. Ignorava até que achassem errado deixar a filha de quatro anos com a mãe, uma evangélica que perdia os cultos noturnos das terças-feiras toda vez que tomava conta da criança. Pecado, no dicionário de Lourdes, era sinônimo de não encontrar o macho. Sorridente, se aproximou. E com o rebolado característico, de entortar qualquer pescoço masculino que cruzasse o caminho.

Ele estava como de costume: traje social, cheiroso e já degustando uma cerveja. Rogério cortejava até a si mesmo, parecia. Levantou, puxou a cadeira, como à moda antiga, a viu sentar e, então, chamou o garçom. Pediu só um copo, mostrando o dele. Ela não perdeu tempo e tascou um beijo que molhou a área compreendida entre a bochecha e o pescoço do rapaz. Virou-se e, ato contínuo, pôs as enormes unhas pintadas de vinho sobre a coxa dele. Era o sinal insinuante, a provocação, o exibicionismo gratuito, o fogo ardente.

Alguns cães trançaram as mesas em busca dos restos de comida no chão. Uma cachorra, prenha, branca e marrom, chamou a atenção. Frágil e obstinada, ao mesmo tempo. Lourdes se identificou. Literalmente. Pensou ser, ali, naquele instante, também uma cadela, só que no cio. Rogério cumprimentou um casal conhecido. O cara, gordinho bonachão, descobriu a tatuagem dela no tornozelo. A mulher, simpática e educada, adotou maior discrição. Lourdes, em chamas, já roçava o joelho, já mordia o lábio internamente, como os que muito desejam.

Poucas palavras, algumas ao pé do ouvido, bastaram. Veio a conta, e uma sensação de que, naquela noite, algo poderia ser diferente. Claro que a companhia de Rogério era puro deleite. Só que novembro, pertinho do verão, pedia um ineditismo. Ela ficou sem jeito. Afinal, já haviam experimentado de quase tudo. O quase fica para práticas sadomasoquistas, vontade de Rogério, escorregões sempre milimetricamente calculados dela. Embebedou-se de coragem, respirou fundo, suspendeu as sobrancelhas, e tascou o pedido: "Amor, me leva no China In Box?".

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Meio a meio

Quando te dava
Metade de mim,
Ainda faltava
Outra banda do sim.

Igreja sem imagem,
Prece sem chão;
Pura embalagem,
Mundo cão.

Quando não te pertencia
O ponteiro parava;
Você vencia,
Lágrima estacionava.

Era seu nosso olhar,
Minha gota sem destino;
Via metade falhar,
Quando era desatino.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Transfiguração

Saí do salão. Fiz estrago capital: o ruivo tomou o lugar do preto na cobertura do cérebro. Não sei se emburreci, como dizem acontecer com as louras. Só pela atitude, bem, talvez sim. Pior que a troca de cor foi inventar uma franjinha para os fios lisos conquistados há pouco. Mantive aqueles óculos Dolce Gabbana, cravejados de algo que remete a diamantes na perna direita. Vesti uma blusa branca antes de sair de casa. Pus, também, a minissaia verde colante que guardava há um tempão por falta de coragem.

Agora estou num botequim beira de estrada, na frente do condomínio dele. Meus amigos vão dizer que pareço uma prostituta. Neste momento sou mesmo, de corpo e copo. Vingativa, já flertei com um cara magro, cara de cachaceiro. Percebi um sorrisinho sacana, canto de boca. O suficiente para melhorar minha combalida autoestima. Fui ao banheiro das mulheres só porque não tinha ninguém no masculino. Contemplo o fim de tarde relativamente bêbada e excitada. E ele ainda não chegou. Não sabe o que o espera nesta agradável primavera.

Vejo três guris malandros, prontos para dar o bote no primeiro gay de meia idade que aparecer. Ah, sobre minha indumentária, esqueci de citar um item importantíssimo pelo simbolismo: tenho três laços nas sandálias; um verde, da cor do calçado; outro vermelho; e o último azul. No meio, uma espécie de meio anel dourado. Sempre que olho para os pés me lembro dos três casamentos. E foram assim: cumulativos, entrelaçados, unidos e findos. Só têm prosseguimento dentro de mim, e por vezes dói.

Ouço Whitesnake. Acho que quase ninguém conhece, exceto pela propaganda Hollywood, meado dos anos 80. "Love Ain't No Stranger" foi um sucesso, como era o próprio cigarro. Logo depois, o MP4, tocou "I want it all", do Queen. Essa, repeti quatro vezes. Provavelmente foi o tempo e a quantidade suficientes para me sentir uma própria rainha, como o Freddie Mercury. "We are the champions, we are the champions, we are the champions", soprei baixinho, enquanto socava a mesa.

Percebi, pelo tremor da mão direita, o efeito das cinco Antarcticas no estômago vazio. O garçom de boné bege desbotado eu conheço. Cumpriu pena junto com meu primeiro marido. Redson saiu da cadeia e pavimentou certa dignidade. Só que não pode ver mulher. É a chance de lançar o olhar conquistador, quase fatal. O mesmo jeito timidamente avassalador utilizado para entregar drogas aos fregueses de outrora. Acho que não me reconheceu de estalo. O semblante tinha um quê de interrogação.

Acabo de descobrir que ele não desembarcou, como previsto. A filha mais velha, uma gorda depressiva e mãe solteira, passou dentro de um táxi com o bebê no colo. Ainda não vai ser dessa vez! Fui lavar o rosto e na volta pedi a conta. Tentei passar o cartão, deu recusado. Nesse instante Redson, com a maquininha na mão, teve certeza de quem estava ali à frente dele. Não disse uma palavra, nem eu. Liguei para uma amiga sem família, solta na vida. Marcamos para o apartamento dela, em meia hora. Fui.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Brilho só

Por que torcer pelo Botafogo?
Simples: é o clube da estrela solitária no jogo.
Identifica solidão.
E exclusão.
Misto de sobriedade com insensatez.
De serenidade com embriaguez.
Ela está lá, cândida.
Pluma no infinito e brinda.

Só, na arquibancada do Maracanã lotado.
No ônibus cheio, na sala de espera do médico, ao lado.
Na poeira do banco da praça, na gola da camisa.
No adversário e na brisa.
Solidão não tem cheiro, gosto, tato ou torcida.
Não se explica direito, é convencida.
Não está só; muitos tentam decifrá-la.
E a fazem companhia no desespero de acalentá-la.

Por conceitos próximos (ou não) da realidade.
Solidão é, por instinto, crueldade.
Mexe com a gente e estapeia.
Silencia.
Cala e consente.
Grita, onipresente:
“É meu time,
É meu time”.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Como ouvi dizer

Eu preciso de você
E arlequim.
Eu quero ter
E vim.

Eu era o que dói
E mim.
E dor que constrói
E fim.

Eu era desenho
E sim.
Eu não contenho
E afim.

Eu não prefiro
E enfim.
Eu até decifro
E botequim.